Quem já visitou Sesimbra notou certamente a construção abaluartada que praticamente divide em duas a praia. Batizada de Fortaleza de Santiago, foi edificada durante as Guerras da Restauração, em meados do século XVII, contra Filipe IV, num local onde antes se erguera um forte mandado construir por D. Manuel I mas que sofreu grande devastação durante a União Ibérica, quando os inimigos tradicionais de Espanha faziam de Portugal também um alvo.
Restaurada há uns anos, a fortaleza é hoje mais uma das atrações culturais da vila – ainda por cima tem o Museu Marítimo. E serve de símbolo de como o desenvolvimento de uma região, neste caso a Península de Setúbal, pode passar por uma valorização da cultura no mais lato dos sentidos. É que se houve uma época em que a indústria reinava – como setubalense, testemunhei a ascensão e crise de grandes empresas, como a Setenave -, a região procura reinventar-se no século XXI, aproveitando a proximidade de Lisboa para efeitos de turismo, mas deixando bem clara a sua individualidade, que passa pelo património arquitetónico e igualmente pela gastronomia e pelos vinhos. Ora, boa gastronomia e bons vinhos foram o que marcou, na quinta-feira à noite, a cerimónia de entrega dos prémios do XXII Concurso de Vinhos da Península de Setúbal, realizada numa tenda colocada na própria Fortaleza de Santiago e que permitia a quem jantava ouvir o suave embate das ondas naquelas pedras já de quatro séculos.
Quanto aos produtos do mar servidos, é-me fácil só dizer bem: o carpaccio de polvo e o filete de peixe-espada preto estavam deliciosos. Não querendo ser demasiado bairrista, em termos de pescado Sesimbra e Setúbal estão num nível superior, basta ver as traineiras a chegar, ir ao mercado observar ou comer num bom restaurante.
De vinhos, confesso só perceber enquanto apreciador. Mas sei como contam para as exportações e também para criar certa imagem de charme de Portugal lá fora, do Porto que a família real inglesa bebe ao Madeira que serviu para Thomas Jefferson brindar à independência da América.
Entre os premiados estavam pequenos produtores e casas afamadas. E essa diversidade refletiu-se nos grandes vencedores, como revela o comunicado final oficial: “Melhor Vinho a Concurso – Domingos Soares Franco Colecção Privada Superior 2001 (Vinho Generoso | D.O. Moscatel Roxo de Setúbal da José Maria da Fonseca Vinhos, S. A.), Melhor Vinho Generoso – Domingos Soares Franco Colecção Privada Superior 2001 (Vinho Generoso | D.O. Moscatel Roxo de Setúbal da José Maria da Fonseca Vinhos, S. A.), Melhor Vinho Tinto – Fontanário de Pegões Vinhas Velhas 2016 (Vinho Tinto | D.O. Palmela da Cooperativa Agrícola de Santo Isidro de Pegões, CRL), Melhor Vinho Branco – Papo Amarelo Reserva 2021 (Vinho Branco | Regional Península de Setúbal da Cooperativa Agrícola de Santo Isidro de Pegões, CRL), e Melhor Vinho Rosado – Guitarrista 2021 (Vinho Rosado | Regional Península de Setúbal de Fernando Santana Pereira Unipessoal, L.da).”
Nas restantes categorias destacou-se, pela acumulação de medalhas de ouro, a Casa Ermelinda Freitas, um caso de sucesso e de liderança no feminino que conheço bem e até merece um referência no mais recente livro do historiador João Paulo Oliveira e Costa, intitulado Portugal na História – Uma Identidade. Aliás, como prova de que estes vinhos da região de Setúbal conhecem projeção além-fronteiras, recordo-me, durante uma reportagem nos Estados Unidos sobre emigrantes, de ver um Dona Ermelinda tinto à venda em San Diego.
Faço o elogio da tradição mas não desprezo o quanto há de ciência por trás do sucesso de muitos vinhos portugueses nos últimos anos, da região de Setúbal e de todas as outras. O papel dos enólogos é decisivo para a renovada qualidade, não descurando, claro, as castas, o solo e o clima. Presentes, aliás, na cerimónia, estiveram dois nomes que já conhecia, Domingos Soares Franco, que em tempos entrevistei, e Jaime Quendera, com quem partilhei mesa e cujas histórias me ensinaram um pouco mais sobre este fabuloso mundo dos vinhos.
Lá fora, o Atlântico continuava a embater nas muralhas. Percebo o que alguém quis dizer quando falava da influência marítima nos vinhos da região de Setúbal.
Artigo de Opinião: Leonídio Paulo Ferreira – Diário de Notícias